"Existe um apartheid educacional no Brasil"
JOANA GORJÃO HENRIQUES e VERA MOUTINHO (em São Paulo )
05/03/2014 - 00:03
Professor no ensino público, Leonardo França, 24 anos, rema contra a maré. Entre 2008 e 2012, e em cada ano, três mil professores abandonaram as escolas públicas estaduais em São Paulo. "Investir e acreditar na educação pública no Brasil é uma tarefa política", diz. Acompanhámo-lo num dos primeiros dias na nova escola, numa periferia de São Paulo.
Leonardo França espreita pela janela do seu apartamento, na zona norte
de São Paulo. Já atravessámos a cidade e chegámos uns minutos depois das 6h, a
hora combinada. Sai de cabelo molhado e mochila às costas, andar acelerado.
O autocarro sobe e desce os morros em direcção a uma zona ainda mais a
Norte, na periferia. À volta, os prédios altos do centro "encolheram"
- vêem-se construções precárias, lixo nas ruas, casas com tijolo à mostra.
Ainda é de noite e irá continuar a ser por mais algum tempo. A vantagem é que
os autocarros ainda não se encheram de gente.
Iremos demorar uma hora, apanhar dois autocarros, até à escola onde ele
dá aulas a estudantes do equivalente ao 2.º e 3.º ciclo português. A campainha
de entrada toca bem cedo, às 7h. "As crianças sentem isso no corpo, não
conseguem chegar às 7h e ficar logo dispostas a estar na aula. Então as
primeiras aulas são mais tranquilas porque eles estão mais calmos, sonolentos,
a acordar."
Por causa do Mundial de Futebol em Junho, as escolas do ensino estadual
anteciparam o ano lectivo e, a 27 de Janeiro, Leonardo deu a primeira aula do
ano na Escola pública Professora Eunice Terezinha de Oliveira Frágoas.
Por esta altura, as férias de Verão no Brasil já acabaram. No ano
passado, Leonardo ensinava Artes Visuais em duas escolas — dois dias numa,
três dias noutra. Nada de invulgar para quem está a começar a carreira, e
precisa de uma semana de trabalho completa para engordar o salário ao fim do
mês. O ordenado médio mensal de um professor como ele no Brasil não chega aos
600 euros.
Saímos do primeiro autocarro, andamos até outra paragem - uma estaca
azul, sem indicação das carreiras que ali passam. Caminhamos depois mais uns 10
minutos até à escola.
As crianças entram por um portão que se fecha, alto, sem
visibilidade para o interior; e Leonardo entra por outra porta. Desaparece, não
podemos entrar. Por enquanto, a sua carga horária é das 7h às 12h20, num total
que calcula ser de 28 horas no período da manhã, de 2ª a 6ª feira. Leonardo dá
aulas a crianças de 10 a 15 anos, num total de 14 turmas.
Mesmo ao lado da escola passa uma espécie de rio-esgoto a céu aberto. O
casario, muito dele feito com tijolo à vista, sobe pelo morro. Há um prédio
alto que se destaca ao longe, o resto é construção precária e baixa como a que
fomos atravessando pelo caminho. Não vemos semáforos em frente à escola, não
vemos lombas para fazer abrandar os carros quando os meninos saírem.
"Se for
prestar atenção na arquitectura de uma escola pública hoje não há nada mais
parecido do que um presídio", analisava Leonardo no caminho. "A
escola pública estadual tem uma arquitectura prisional, foi o primeiro choque
quando entrei: a quantidade de grades, de câmaras de segurança, de buracos por
onde passar, de cadeados em todos os lugares, de guichets que são isolados, de
salas protegidas... Os alunos sentem no corpo essa opressão, essa falta de
autonomia e de liberdade.
Na escola particular, quando você entra é um outro ambiente, quase
empresarial, limpo; é a protecção do mundo lá fora - protege aquelas crianças
de classes sociais mais abastadas da violência, da insegurança que está na rua,
que está na cidade. Então é um ambiente agradável, confortável. Acho isso
preocupante, é uma coisa esteticamente planeada, para criar uma bolha."
Desafios concretos aqui onde dá aulas: falta de condições para trabalhar
com os alunos, num espaço adequado, numa área - as artes - em que precisa de
material e não tem; não há informação sobre as necessidades dos alunos e das
turmas porque "a maioria dos professores são novos"; o planejamento
para o ano "só é feito daqui a dois meses".
"As salas estão superlotadas. No início do ano não há tantos
alunos, estão voltando de férias, mas dentro em pouco vai ter 40-45-50 alunos
numa sala." Nesta escola, as crianças são sobretudo da periferia, "bem
carentes". A maioria tem "uma estrutura familiar conturbada",
muitos não têm pai ou o pai não está presente. "E a gente percebe logo de
início que as crianças acabam por ter uma proximidade com o professor homem e
vai e falam: 'Pode ser meu pai? Posso ser seu filho?'"
Violência é com o aluno
Licenciado em Artes Cénicas, Leonardo começou por ensinar em escolas privadas. Mudou para o ensino público no ano passado - é neste momento professor temporário. Como se candidatou a efectivo, pode acontecer ter de abandonar a escola onde está para assumir o cargo noutra, bem a meio do ano lectivo. Posiciona-se de um lado da linha que divide o país em dois. "Na verdade, existe um apartheid educacional no Brasil: quem pode pagar tem educação, tem acesso a conhecimento, a informação, a tecnologias novas; e, quem não tem, fica à mercê dessa escola." Depois há a relação directa com os alunos. "O aluno da escola privada sente-se em casa na escola. Sente-se confortável com o professor." Socialmente, estará de igual para igual, por vezes até em posição de vantagem. Já na escola pública, a primeira impressão que Leonardo sentiu foi que "ia ser atacado", "muito pela mitologia que se criou".
Viu "alunos que têm um porte físico de adultos" e "uma
mentalidade de adultos", "quando eles querem ferir eles sabem".
"Então fui todo 'armado'. E quando entrei armado eles ficaram armados. Fui
mudando a minha postura."
E foi reflectindo: critica-se
a forma como o ambiente na escola pública "é violento", "mas
ninguém para para pensar o quanto a escola é violenta com o aluno", diz.
"Acho que a maior violência que se pode falar hoje no Brasil é a escola
pública, que é uma violência contra o aluno - no seu formato, no seu modo
arcaico de ser modelo de educação, de fazer o aluno ficar das 7h ao meio-dia
dentro de uma sala de aula, quente, sem ventilação, com outros 40 ou 50 alunos,
ouvindo o professor falar, sem se poder levantar... E aí dá para entender um
pouco melhor a revolta que eles sentem contra o próprio espaço."
Se lhe perguntassem, ele diria que vive num bairro de classe média. Nem
sempre foi assim. Cresceu na periferia de Guarulhos, no Estado de São Paulo,
filho de professora e de pai desempregado. De volta a casa dele, já depois de
dar aulas, conta-nos que teve um professor de artes que o inspirou. O
apartamento fica na cave, mas as janelas a todo o comprimento do rectângulo que
é a sala fazem entrar muita luz. As estantes enchem-se com livros, muitos de
arte, há pincéis, há desenhos, um computador, fotografias da família.
Entre os 14 e os 18 anos, Leonardo trabalhou numa fábrica metalúrgica.
"Acordava às 5h, entrava às 7h, saía ao meio dia. Depois ia estudar
mecânica numa escola técnica e depois ainda ia para o ensino médio [secundário]
numa escola pública - durante três, quatro anos fiz isso. A qualidade de vida
só veio a mudar mais recentemente, na universidade. Fui começando a trabalhar
noutras coisas" - como o teatro. É apaixonado pela profissão, apesar de,
na escola de artes, quem segue a via pedagógica ser olhado de lado, como se
fosse "uma artista frustrado", lamenta. "Quando entrei, percebi
a dificuldade e as pequenas satisfações - que é quando você vê o aluno por si
próprio seguindo um caminho, exercendo uma pesquisa, se interessando por coisas
que antes não se interessava."
No ano passado, com um grupo de cerca de 15 professores jovens, Leonardo
participou num projecto em que fizeram um simpósio de Filosofia com temas
escolhidos pelos alunos, primeiro no próprio liceu, escola pública na periferia
(Escola Estadual Pedro Alexandrino), depois numa universidade. Descobriu que
alguns alunos eram poetas, outros músicos. Fala disso com emoção.
À tarde, quatro desses professores juntam-se à conversa. Chegam e
sentam-se com à-vontade de quem conhece a casa, falam com entusiasmo da
experiência, criticam o ensino. Juntaram-se em grupo de trabalho por iniciativa
própria, fizeram várias horas extraordinárias, tudo pro bono. Wládmir
Gonçalves, 31 anos, professor de Português, descreve um sistema onde "o
aluno é obrigado a passar de ano" - ao abrigo da progressão continuada, o
aluno não reprova. Por isso, teve alunos do 2º e 3º ciclos português que
"eram analfabetos", e alunos do ensino secundário "que são
analfabetos funcionais" (sem capacidade de interpretação).
Há alunos que nem sequer conseguem localizar geograficamente a zona onde
moram, sublinha. "Já tive alunos do [8º ano] que não sabiam escrever o
próprio nome...". Ele, que cresceu numa favela - e só é classe baixa pela
zona onde mora, porque a casa tem quatro quartos, garagem, a mãe tem um carro
caro, etc, diz -, desdobra-se em aulas para ganhar mais uns trocos. Com salas
onde estão 50 alunos, e aulas de 50 minutos, fica com um 1 minuto para cada
aluno, calcula. "Como é que consigo construir alguma coisa?"
Recentemente, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura (Unesco) divulgou um relatório onde o Brasil aparecia como o oitavo
país com maior índice de analfabetismo num ranking de 150 países (cerca de 13
milhões). O número de analfabetos funcionais também é alto: 27% em 2011,
segundo o Observatório do Plano Nacional da Educação (PNE). Em São Paulo, o
estado mais rico do Brasil, está a maior rede de ensino.
E os profissionais do ensino são o terceiro grupo ocupacional mais
numeroso do Brasil, segundo dados da Unesco de 2009, sendo que mais de 80%
pertencem à rede pública. "O nó crítico do país é a qualidade da educação,
especialmente em relação à aprendizagem", disse Maria Rebeca Otero,
coordenadora de educação da Unesco no Brasil. "O aluno está na sala de
aula, mas não aprende. É uma exclusão intraescolar: 22% dos alunos saem da
escola sem capacidades elementares de leitura e 39% não têm conhecimentos
básicos de matemática."
São investidos em Educação o equivalente a cerca de 5% do PIB, valor que
o PNE, ainda a aprovar pela Câmara dos Deputados, quer dobrar para 10%. No
famoso Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), divulgado no ano
passado, o Brasil ficou em 55º lugar em leitura, em 58º em matemática e em 59º
em ciências, num ranking de 65 países (embora tenha melhorado em relação a
2003, tendo em conta a média das três áreas).
Dois estudos mostram as tendências da profissão de professor: a pesquisa
Atractividade da Carreira Docente no Brasil, da Fundação Victor Civita, revelou
que só 2% dos alunos do ensino secundário queriam seguir a carreira de
professor; já outra feita pela Unesco, Professores do Brasil: Impasses e
desafios, mostrava que os jovens que procuram a carreira docente pertenciam a
classes mais baixas e tinham estudado em escolas públicas, como Leonardo e
Wládmir, e como Adriano, Cristovan e Nicole, os professores que se juntam a
esta conversa de final de Janeiro.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco) divulgou um relatório onde o Brasil aparecia como o oitavo país com
maior índice de analfabetismo num ranking de 150 países. O número de
analfabetos funcionais também é alto: 27% em 2011, segundo o Observatório do
Plano Nacional da Educação
As críticas feitas ao sistema dizem que os professores não são bons, que
a qualidade do ensino é fraca. "É fácil culpar o professor",
respondem eles. Leonardo culpa antes "a política de precarizar cada vez
mais a formação e o trabalho do professor". "Fala-se que os
professores são ruins. Pegar no individual é fácil, agora olhar para o
sistema..."
E a precarização começa pelo salário, queixam-se: no Brasil, os
professores do ensino básico ganham em média cerca de metade do salário dos
profissionais com as mesmas habilitações - o que dá 18,3 reais por hora,
enquanto os outros profissionais ganham 29 reais, ou seja, cerca de 5,6 e 9
euros respectivamente (dados de 2012, elaborados pela ONG Todos Pela Educação,
a partir do Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística - IBGE).
Leonardo, por exemplo, não sabe ainda quanto vai ganhar ao fim do mês,
pois as aulas ainda não estão todas alocadas, e a escola onde foi colocado
"tem um suplemento por ser considerada de difícil acesso". "No
máximo dos máximos vai dar 2 mil reais (620 euros). Eu pago 550 reais (170
euros) de aluguer pela casa, mais 120 (37 euros) de condomínio. No ano passado
ficava com 600-700 reais para transportes, alimentação...". Um bilhete de
autocarro ou de metro custa um euro, por exemplo.
Sentado no chão da sala de Leonardo, Cristovan Ribeiro, professor de
Geografia, analisa: "O principal problema é que a educação está muito
atrelada à política, é ferramenta de campanha." E ser professor, diz,
"é remar contra a maré": não tem o apoio da sociedade, nem da família
(que aconselha a escolher uma profissão mais bem paga), "não tem o
reconhecimento do estado, não tem reconhecimento muitas vezes dos alunos, não
tem reconhecimento financeiro". Mais problemas que identificam: a
carreira não é atractiva, os professores ficam pouco tempo nas escolas e não
desenvolvem um projecto de continuidade com os alunos, falta planeamento...
No ano passado, o jornal Estado de São Paulo fez um
levantamento que revelava uma debandada de professores: entre 2008 e 2012, e
anualmente, cerca de 3 mil tinham abandonado as escolas públicas estaduais.
Leonardo explica a sua escolha pela escola pública. Sentado na sala, diz
que se trata de "uma posição política de não aceitar a privatização do
ensino e, apesar das dificuldades, tentar fortalecer o ensino público".
"Investir e acreditar na educação pública no Brasil é uma tarefa política,
é uma coisa que você faz porque adopta isso como estratégia para algum tipo de
mudança. Pode parecer um pouco idealista, porque há vários problemas, mas ainda
há professores que decidem ser professores da escola pública. Devo a minha
formação à escola pública e a alguns bons professores. Então é o meu lugar de
origem, é onde eu me sinto localizado." É também "uma questão de
classe."
Fonte:
http://www.publico.pt/mundo/noticia/existe-um-apartheid-educacional-no-brasil-1626450
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